segunda-feira, 30 de novembro de 2009

manhã

esta manhã descobri o granizo, o tom sépia da gasolina, queria provocar um incêndio, mas ninguém caminha pelo inverno rigoroso com um cigarro nos lábios, esta manhã descobri o amor, as sete nuances do arco-íris, os quatro piscas ligados ao fundo da rua, viras à esquerda e segues sempre a descer, esta manhã descobri como não acabar as frases, nos dedos a gasolina que evapora, mas se todos voltássemos a casa sozinhos e molhados, não seríamos mais tristes, nem mais abandonados, seríamos apenas nós próprios, esta manhã.

clementina

segura na mão a clementina, a frágil casca com ar dentro, antes do fruto, tocas-lhe a pele e sentes como está fresca, a frágil casca com ar dentro, antes do fruto, o fruto doce ou amargo, quando saberás, segura na mão a clementina, a frágil casca arrancada com carinho, o fruto, o fruto doce ou amargo, tu saberás, quando por instantes lhe pousares os lábios e desceres os dentes pelo fruto, assim usado e abusado, doce ou amargo, tu lá saberás.

mar

esta noite o mar subiu até às paredes recém-construídas do passeio marítimo. o mar subiu e alguém acordou cedo para se passear pela areia. alguém acordou cedo e deixou marcado as pegadas em círculos, pela areia. em círculos que ficaram desenhados enquanto a manhã abria, depois do granizo o sol, depois do sol os casacos despidos, depois de tudo isso o mar, de novo, a subir até às paredes recém-construídas do passeio marítimo.

domingo, 29 de novembro de 2009

popless - III

nós, os humanos, sabemos umas duas ou três coisas sobre o desejo. de como os corações aceleram e a respiração se inquieta. de como os dentes procuram os lábios para se mordiscarem, para se provocarem à dor que é a antecâmara do prazer. eu e tu fazemos agora por descobrir a ondulação do teu cabelo que envolve o pescoço e desce pelo peito. Tu vês-me e sabes, o meu olhar percorre-te, beija a tua orelha, a tua nuca, descobre o sol nas tuas costas, encosta-se a ti, oferece-se ao calor, ao calor que reprimes mordendo o lábio, tapando ou destapando o seio, poucos segundos antes do teu corpo, o meu olhar, as nossas mentes, serem uma bola de fogo posto nos lençóis onde caímos.

popless - II

este é o meu mundo, digo-te agora eu à cabeceira, enquanto tu invades o cenário que é a nossa intimidade e te balanças ao som do ritmo do nosso respirar. este é o meu mundo, digo-te, e os teus cabelos esvoaçam no jeito das tuas ancas, o teu corpo liberta-se, aos poucos, da pouca roupa que já o cobria. descubro no teu sorriso a simplicidade das pequenas coisas, fizemos um pacto com o desejo e sabemos bem do que são feitas as palavras quando as enchemos de vida e partilha. este é o meu mundo, digo-te eu, a alça do teu vestido escorrega como um rio que encontra a maré cheia, somos, agora, onda que transborda da cama do nosso encontro.

popless - I

os segredos contam-se ao de leve, eu não sei já onde tudo terá começado, de noite ou de dia, nós não fazemos as horas dos nossos próprios desencontros. era do silêncio a nossa relação agora inaugurada, do silêncio dos elevadores a subir e a descer nos arranha-céus, das bocas marcadas nos espelhos, pequenas vinganças que deixamos aos vizinhos que chegarão ainda mais tarde do que nós. nada em nós era contacto, apenas desejo dimensionado pelos olhares escondidos. no início, tu e eu, ainda éramos tão menos do que o prometido, tão mais pequenos do que aquilo que as explosões que sentíamos no interior dos nossos corpos pareciam já prometer.

sábado, 28 de novembro de 2009

forças

até que chegaram os dias em que as vozes mais altas ecoaram nos meus ouvidos e o meu corpo foi de novo arrastado pelas paredes e pelo chão até ao gabinete do director. um homem altivo, de voz colocada, que olhava para mim como quem olha o lixo. ofereceu-me um chocolate. disse-me que muito em breve eu estaria fora dali. que admirava o meu trabalho e a minha dedicação à arte. que tudo não teria passado, infelizmente, de um engano lastimável. e eu era todo olhos no chão, sem forças, nem para me animar, nem para acreditar que tudo aquilo acontecia, assim, como me parecia estar a acontecer.

reclusão

a manhã acordava água nos meus pés, uma água que não se percebia de qual origem, se do tecto se do chão. os meus pés acordavam gelos quebrados, os dedos carcaças de um gesto, o olhar sempre fechado. fechado estava eu no meu labirinto, sem saber bem como lá teria chegado, até. um labirinto premeditado, ainda assim. só com portas fechadas por todos os lados.

assobio

nenhuma música talvez fosse o sinal, o frio a entrar nos ossos, os passos marcados pelo eco das solas nas paredes que se estendiam em longos corredores. nenhuma música talvez fosse o sinal, ou talvez fossem as duas mãos enormes que me seguravam os braços, apertavam o corpo, por entre aqueles dois homens, mais que homens, troncos. nenhuma música talvez fosse o sinal, até que de uma parede se ouviu alguém que assobiava, alguém que contrariava o terror daquele silêncio com uma pequena melodia popular, um acto de resistência, um acto de vida, no meio do betão escuro.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

filosofia

queres mais cru, apaga o lume - dizia o homem do fogareiro - e as minhotas a dançar à volta da fogueira, mãos dadas, pés descalços, o vento a espalhar fagulhas por toda a parte, o pinhal a pegar fogo, os casais de namorados a fugir, nus, para se deitarem ao mar de ofir, queres mais cru, apaga o lume - dizia o homem do fogareiro enquanto se ria - e a maria vitória a tomar o palácio de fão enquanto se apagavam as luzes de toda a localidade, certos dias um gajo acorda estremunhado dos sonhos e não sabe bem em que realidade se encontra, os braços dormentes, as mãos sujas, as palavras todas misturadas dentro da cabeça, enfim, dizes sempre isto, pois, pois, pois, queres mais cru, apaga o lume - o homem do fogareiro tinha um bigode à artur jorge - e ao balcão um outro tipo de barbas compridas, as teses de mestrado a empilharem-se a uma ponta, os casais de namorados, nus e completamente encharcados, a beberem limonadas na esplanada, como se fosse verão e a tarde chegasse agora ao fim.

contraste

tinha sempre palavras muito pequenas para o que precisava de ser dito. todas as mulheres com a mania que são boas a lerem henry miller enquanto esperam pela sua vez no cabeleireiro. as febras a assarem na brasa, a telenovela da tarde, as conversas de todos os dias. todas as mulheres com a mania que são boas com a mania que escrevem coisas interessantes. os homens cheios de tesão atrás delas, as marias vitórias a gritar que se acabou a história. a febra ainda crua no momento da dentada.

um dia destes

um dia destes era capaz de pôr lisboa em viana do castelo, as minhotas a dominarem o conselho de ministros, o siza a fazer bibliotecas pelo país todo, as manhãs mais claras do que o sol, o vento forte, o mundo ao contrário, um dia destes.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

apetece

às vezes apetece-me, nem sempre me apetece. às vezes estou aflito, outras vezes eu evito. em situações eu me levanto, horas depois eu fico em pranto. às vezes apetece-me, nem sempre me apetece. numa hora tão pouco, noutra hora tanto. a mão que me segura é a mesma que me empurra. às vezes apetece-me, nem sempre me apetece. alguns dias eu acordo-me, outros adormeço-me. a vida segue assim, a vida segue em mim. às vezes apetece-me, nem sempre me apetece.

neve

um dia haverá neve sobre o mar, dizia o louco no miradouro. um dia haverá neve sobre o mar e os nossos corpos irão tremer de frio como terramotos. nesse dia, quem sabe, adivinharemos de olhos fechados os nomes das marés.

prédio

o prédio deserto não é deserto, é uma voz algures no andar de cima, passos silenciosos nas casas, um pássaro morto encontrado numa varanda. o prédio deserto não é deserto, o barulho das canalizações, os livros que se mexem nos armários, o vento nas janelas. o prédio deserto é ainda um resquício da enchente, uma música entoada pelo espaço, no vazio que ficou dentro do prédio, dentro de nós.

cefaleia

a cabeça não rebenta, a cabeça fica, fica sempre no mesmo lugar, por cima do pescoço, como se mandasse, a cabeça não rebenta, a cabeça fica, mas quando fica a doer, a cabeça dói, a cabeça dói, e tudo se rebenta à nossa volta, menos a cabeça.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

invento

inventam as coisas com oceanos dentro e acabamos por sentir que o oceano é o meio que reparte, que divide, que afasta. inventam as coisas com ar dentro e acabamos por sentir que o ar é o exclusivo, o medicamento, o veneno. inventam as coisas com gente dentro e sentimos sempre que vamos ficar de fora. inventam as coisas como se inventassem coisas e nós, não tendo como as mudar, perdemos o sentido da invenção.

voz

um fio de voz escorre pela parede de um mundo que ainda não existia, mas que nós já tínhamos, sem dúvida, criado na ausência um do outro. agora o encontro é o desencontro e tudo é uma fusão de vontades ou desejos que ainda não conseguimos exprimir. um fio de voz escorre pela parede, quem o provasse poderia dizê-lo doce, cheio de cama, sonho, aproximação.

desenho

o meu desenho é o tamanho da chuva contra a janela que ficou aberta. o imaginar da porta que se vai abrindo empurrada pelas gotas. as lágrimas que nunca existiram, como se fossem filhas do nada, no chão da sala. o meu desenho é esse momento que nunca aconteceu. que poderia ter acontecido. num dia como o de hoje, talvez.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

mais eu

o que se muda, muda-se, e nem sempre damos por isso: observo-me agora a ser outra coisa que eu não era, mais completa, sorridente, feliz, e eu nem sempre dou por isso, o que se muda, muda-se, ficou mudado, eu sou agora mais eu.

pedido

o pedido ficou atrasado, o telefone a tocar, como é que eu vou perceber o que me pedem, se quem me pede ainda percebe menos do que eu? o pedido ficou atrasado, o telefone por atender, os gritos a ecoar, a ecoar, na sala sala sala sala...

mim

tu estás em mim e eu estou quase a chegar. fazes as tuas magias, as tuas poções, eu apenas vejo e acredito. tu estás em mim e eu estou quase a chegar. apaga-se a luz, contam-se os passos, eu apenas sinto e acredito. tu estás em mim e eu estou quase a chegar. e por vezes dizes que não, mas também tu acreditas.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

dom

o nosso discurso há-de ser todos os lugares vazios na plateia. por entre as cadeiras surgirão os passos despedaçados dos cadáveres. o nosso discurso há-de ser todos os silêncios feito um só. por entre os olhares que não existem a mansidão. e depois atearemos o fogo final das nossas gargantas. tossiremos um pouco, apertaremos as mãos. saíremos incólumes da grande aventura da vida.

oração

todo o romantismo é uma arma sobre uma secretária, um quarto dos fundos, um mapa sem norte. todo o romantismo é uma praia vazia, o vento sem gente, um delírio com os pés no chão. diz-me o maior dos teus segredos e eu dir-te-ei quem serás. a nós, ninguém nos poderá nunca parar. nunca.

cavaleiro

de lança quebrada entre os dedos, o cavaleiro segue a sua dança - o caminho que não se faz, a música que não se entende - o olhar mortiço, o cabelo despenteado, a barba por fazer. de lança quebrada entre os dedos, no fundo do mar. no fundo do mar.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

morrer a escrever

não se morre a escrever, diria o anjo sobre o ombro do escritor, ninguém morre a escrever. entre o sopro da morte e a sua chegada, a caneta cai e os olhos do escritor concentram-se nas suas últimas palavras, naquelas que ainda conseguiu desenhar antes da fragilidade dos dedos e nas outras que ficarão por escrever. não se morre a escrever. morre-se a ler. morre-se a pensar no que se poderia ainda escrever se não fosse a morte, se não fosse a ideia de que falta sempre ainda qualquer coisa, o que nos torna ansiosos e incompletos, mesmo no momento da morte.

ae

uma placa de autoestrada pode mudar uma vida: o nome da tua cidade aparece escrito num local próximo da uma lixeira, e a tua cidade passa a ser identificada como a própria lixeira.

ae

uma placa de autoestrada pode mudar uma vida: pensas que vais na direcção certa e quando te apercebes do erro, já é tarde para voltares atrás.

ae

uma placa de autoestrada pode mudar uma vida: um homem que chegou atrasado ao local do encontro, local que a mulher já tinha abandonado, por achar que ele não viria.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

segredo

não o foste mas desejaste, ser mulher sobre as chamas das pequenas cidades de província, aglomerados populacionais de primos e primas, rebentadas as costuras da gravidez sempre adiada, agora já sabes quanto custa um anúncio no jantar de família. nunca tiveste hora marcada, namoraste os rapazes como quiseste, foste um barco sem remos no pequeno ribeiro do porto novo, foste um inglês perdido à procura dos fortes das linhas de torres, foste um automóvel perdido no escuro das arribas e agora, agora, ainda me vais saber dizer quem és? não o foste mas desejaste, ser mulher. e não há segredo tão mal guardado que te ecoe mais forte dentro do crânio.

boutique

compra as peças de roupa que considerares necessárias para a inauguração do teu corpo, a cabeça perdida e um pacote de lenços de papel, sabes que na tua vida sempre houve espaço para duas velhas sentadas à porta de casa, a contar os automóveis, a beber das caleiras, e traz o teu vestido novo, a saia rodada, o que escolheste, e danças em cima da mesa enquanto as luzes se apagam, é a inauguração do teu corpo, o homem grande diz, e as velhas entram na casa e surpreendem-te, tens os pés em cima do vestido, repreendem-te, tu olhas a roupa nova amarrotada e choras.

terminal

tenta aprender o caminho desde a cama até à janela em passinhos de bebé, leva na mão um copo de vinho e uma bolacha, concentra-te, concentra-te, nada pode falhar, demora o tempo que quiseres, o tempo que quiseres, ensaia o discurso, mentalmente, apenas, e salta, salta até lá abaixo, para sempre.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

palavra

mais um dia, ou outro, eu vou ser capaz de escrever o que já foi dito, mas naquelas palavras que eu encontro no mais profundo dos silêncios. mais um dia, ou outro, no momento em que eu te demonstrarei, mais uma vez, que eu sou palavra, apenas palavra, nada que se possa tocar ou sentir muito mais do que um momento em nossas mãos.

talvez

talvez não seja bem a mesma coisa, dizer-te assim ou não dizer, fazer ou não fazer, talvez não seja bem a mesma coisa, a minha mão sobre a barriga, é de manhã, o meu corpo a crescer, a desfazer-se, enfim, talvez não seja bem a mesma coisa, ou então a vontade de fugir no fim das histórias que se inventam deste jeito.

estrondo

e o que eu guardo nas horas de silêncio, é o imenso estrondo de mim mesmo a correr atrás da explosão.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

a pensar

tenho andado a pensar no que fazer com as mãos, o corpo estendido e quente, os lençóis. tenho andado a cismar em algumas palavras com a boca, os olhos fechados, os domingos de manhã. tenho andado ocupado com a noite no dia, o dia na noite, a luz de todos os corpos nas varandas. tenho fumado cigarros, tenho esquecido compromissos. tenho escolhido não atender os telefonemas intercontinentais, tenho tentado desenhar mapas, tenho olhado a chuva no pára-brisas do meu carro. tenho ouvido a voz martelada do valter hugo mãe, tenho escolhido as coisas propícias aos dias cinzentos, tão propícias que chego a pensar que sou também cinzento por dentro. tenho escolhido não ler, não escrever poemas. e chego a sentir que tudo aquilo que faço se transforma, então, nesse longo poema de onde eu não serei capaz de sair nunca. tenho andado a pensar no que fazer com as mãos. o corpo quente. os lençóis.

mulheres

certas mulheres perderam o tempo, perderam a hora, perderam o pé, afundaram-se. certas mulheres falam falam falam falam falam, recuperando o nada estar recuperado alguma vez. certas mulheres cantam, fornicam, bebem, voam, vêem os noticiários, chamam nomes complexos aos maridos. certas mulheres casam-se, divorciam-se, engravidam, tiram cursos, não se calam. certas mulheres, apenas por terem visto a luz, não se cansam de apontar os máximos nos nossos olhos. noite e dia.

vento

o vento nos olhos, nos cabelos, o cheiro da terra molhada, a chuva ao longe, chegando-se a nós, os pés nas pedras, os pés na lama, esquecermo-nos talvez, que dia é hoje, de onde chegamos?, o vento nos olhos, nos cabelos, um cântico esticado até ao assobio, um corpo deitado sobre o terreno lavrado, quando se planta, aquilo que cresce, o que vai ser, o que vai ser?

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

realidade

apanhas algum frio nas costas suadas, a constipação chega, respiras pior, as alergias aumentam, tomas os comprimidos, não passa nada, apenas entras numa nova realidade onde até escrever é já outra coisa, outra linguagem, outra língua, que talvez tu não percebas, mas quem te lê ignora por completo.

amarelo

a tua cara é isso mesmo, um pequeno boneco amarelo e sorridente, a piscar num écrã de computador, e se dizem que não gostam de ti, que querem palavras, tu dizes, minha querida, isto é o mais longe que eu consigo ir aqui sentado.

alerta

o fim-de-semana e dizem-te, a chuva lá fora e muito vento, alerta amarelo o país todo, pensas em casa, pensas em abrigo, a cabeça fechada no antí-histamínico a secar-te as narinas, respiras ou não respiras, depende dos momentos, dizem-te fim-de-semana, tu dizes adeus.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

encontro

se não houver outra coisa, inventemos o silêncio. e falemos dele a noite inteira.

vocabulário

se queres que te diga, escolho o fim do dia para beber do copo a maçã desfeita de adão. recomeço, mas não encontro, a intricada teia de penélope. se olhares agora, não acredito, apenas invento algumas novas palavras na fuga pelos rios que já secaram.

diatribe

é preciso saber inventar o animal, construir a casa, desenhar o caminho. é preciso saber a matemática, a ideologia, a solidão. tentar bater os dedos na madeira seca. poder agarrar as manchas do dia-a-dia. é preciso saber inventar uma nova língua. começar de novo. é preciso.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

cara de anjo-mau

com os saltos altos e o passo decidido, parece impôr-se sobre a terra como as deusas, os olhos muito abertos que te comem ou consomem. a sua voz ecoa nas ruas onde a encontras, como se quisesse assustar as almas ou os pássaros. tudo isso seria da ordem da ameaça, não fosse tu saberes como se olha para além das fachadas das pessoas. não fosse tu saberes que se trata apenas de um anjo que deseja ser uma flor.

corpo de delito

o corpo do delito é um corpo escondido num largo pijama. é um corpo que não fala, recebe. um sorriso que se aumenta, que se inventa sobre as palavras. a origem e o fim das coisas, agora reiniciadas num novo formato. o corpo de delito é a promessa, o desejo. é o corpo que só bebe, que se encanta. um olhar que te distrai, que te inventa muitas palavras. o fim e a origem das coisas, num formato desconhecido ainda.

um estranho caso

mal se conheciam e desejavam-se. ela quase desfalecia junto dele, ele sentia-se tomado pela excitação na presença dela. na primeira oportunidade que tiveram para ficar a sós, ele agarrou-a pela cintura e beijou-a. ela deixou-se levar. não resistiu a abrir-lhe as calças e a senti-lo, ao mesmo tempo que ele deixava as suas mãos invadir o interior da camisa dela, os seus peitos tesos. mal se conheciam e, no meio da loucura, ela quis ter a certeza de saber quem ele era. pediu-lhe a identificação. ele achou estranho, mas mostrou-lhe. vestiram a roupa e foram embora.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

muro (III)

para alexander meyer, estudante de português em leipzig no ano de 1989, há uma canção de chico buarque que explica tudo. "foi bonita a festa, pá", repete ele a quem o queira ouvir falar da alemanha unificada. o que acontece é que a antiga rda é, como agora em tempos de crise, quase um "imenso portugal". desemprego e pobreza, abandono e esquecimento. alexander meyer não tem saudades das políticas de outrora, mas para ele custa-me a realidade de hoje. e muitas vezes ainda procura um novo muro, para que ele o possa saltar e começar a festa de novo. a festa bonita, pá.


für alexander meyer, portugiesischstudent aus leipzig im jahr 1989 erklärt ein lied von chico buarque alles. "schön war das fest, mann", singt er jedem, der etwas über das vereinigte deutschland erzählt haben möchte. die ehemalige ddr ist heute in zeiten der krise eine art "riesiges portugal". arbeitslosigkeit und armut, leerstand und vergessen. alexander meyer sehnt sich nicht nach der politik von früher, er leidet an der realität heute. und oft sucht er nach einer neuen mauer, die er überspringen kann, damit das fest von neuem beginnt. das schöne fest, mann. (tradução de michael kegler)

muro (II)

daniel haas, sentado em cima do muro, olhava o ar radiante da multidão a correr em direcção a berlim ocidental. algumas dessas pessoas experimentaram, pela primeira vez, coca-cola, alguma droga, a paixão desenfreada da liberdade. daniel haas, sentado em cima do muro, guardou três ou quatro pedaço de pedra, e voltou a berlim oriental, onde se apercebeu que o seu café de todos os dias estava encerrado. começou nesse momento, para daniel, o pagamento do terrível preço da liberdade. berlim oriental morta.


daniel haas sah, auf der mauer sitzend, die begeisterung der menschenmenge, die richtung westberlin rannte. manche dieser menschen probierten zum ersten mal coca-cola, irgendwelche drogen, die ungezügelte leidenschaft der freiheit. daniel haas saß auf der mauer, steckte sich drei oder vier steinbrocken ein und ging nach ostberlin zurück, wo er bemerkte, dass sein stammcafé geschlossen war. in diesem moment begann daniel den grässlichen preis der freiheit zu zahlen. ostberlin war tot. (tradução de michael kegler)

muro (I)

hanno balitsch não saiu de casa depois do anúncio da conferência de imprensa. vivia em berlim oriental e não saiu de casa. ouvia a correria nas escadas, a gritaria nas ruas, o entusiasmo electrizante no ar. hanno não saiu de casa, de rádio e televisão desligadas, a tentar esquecer-se do mundo. não o assustava a liberdade. assustava-o o fim da vida como a conhecia. e isso, para hanno balitsch, aos cinquenta e oito anos, era inaceitável.


hanno balitsch ging nach der pressekonferenz nicht aus dem haus. er lebte in ostberlin und ging nicht aus dem haus. er hörte das gerenne im treppenhaus, die ruferei auf den straßen, die elektrisierende begeisterung in der luft. hanno ging nicht aus dem haus, ließ radio und fernsehen aus, versuchte, die welt zu vergessen. nicht die freiheit erschreckte ihn. ihn erschreckte das ende des lebens, wie er es kannte. und das war für hanno balitsch mit seinen achtundfünfzig jahren unzumutbar. (tradução de michael kegler)

domingo, 8 de novembro de 2009

paradoxos

olhas pela janela, lá fora chove, chapéu-de-chuva na mão, a chuva pára. olhas pela janela, lá fora não chove, chapéu-de-chuva em casa, chuva na cabeça.

nuvem

o prédio ficava calado dias inteiros, como se nada houvesse a dizer ao resto do mundo senão este silêncio, esta imensa nuvem de início de novembro, onde uma alma aterra e, muitas vezes, nem sabe, nem quer sair.

desejo

agora inventa um domingo de chuva, com o vento a querer as janelas lá fora, e depois inventa uma cama onde nos deitamos, e nos agarramos como se agarram os livros, e não adormecemos nunca de tanto nos termos um ao outro.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

choro

no fundo, acabamos sempre por chorar a nossa dor, nunca a dos outros. mesmo que a nossa dor seja causada pela dor dos outros, é a nossa dor. é a nossa dor que choramos.

pessoa

aquela pessoa de quem nós gostamos, às vezes, deixa de ser como ela é. aquela pessoa de quem nós gostamos, às vezes, torna-se imprevisível. aquela pessoa de quem nós gostamos, às vezes, toma as decisões erradas, segue por caminhos incertos, torna-se alguém que nós mal conhecemos, e que terrivelmente, é aquela pessoa de quem nós gostamos.

coração

é preciso muito pouco para desligar um coração. uma palavra que não se disse, um gesto que não se fez, um olhar do qual se fugiu. é preciso muito pouco para desligar um coração. um silêncio inapropriado, um passo apressado, uma paragem que ficou vazia, mesmo quando estava lá alguém.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

biochip


o segurar da mão ficou registado, impressão digital reconhecida. fizemos do corpo um repositório de memórias exactas, quando a regra era sobreviver apenas no meio da névoa, passados os dias. o segurar da mão ficou registado, o gesto mínimo do carinho digitalizado. não conseguimos dizer do sabor ou do tacto do outro, mas sabemos todos os segredos, todas as chaves, todas as entradas do mistério máximo da ilusão.

transplante

não sabes onde começa o homem e onde termina o animal. ouves apenas o respirar, respirar, cronometrado pelo músculo-coração. não sabes onde começa o homem e onde termina o animal. transplantaste, não só o corpo, a ética, a moral, caminhaste despido pelas fronteiras e, da tua voz, não sai agora razão, apenas, o bater do coração.

imagem de evi apostolou

regeneração



chegará o dia em que dirás, lembrar o corpo?, e seremos apenas sorrisos pixelizados. não bastará o toque, o abraço, o coração - tudo será feito de outra forma, como se a regeneração das almas dependesse da terra e tudo se misturasse como nunca tivesse sido diferente.

imagem de evi apostolou

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

e qualquer coisa em jeito de epílogo

às vezes a realidade é bem pior que a ficção. às vezes temos que enfrentar aquilo que preferíamos não ver. isto porque, ao entrares aqui, vais ler alguns textos que te farão suspirar de tão bonito parecer o mundo quando acontece na província. já muitas vezes me acusaram de ser demasiado depressivo, negativo. agora olho para alguns textos e vejo as coisas demasiado solares. nunca me senti nem de um lado nem do outro. tenho andado no meio, às voltas, de um lado para o outro. talvez por isso pise em muito lado. alguns desses lados são território minado. mas enquanto não explodir, ainda se pode passear.

três histórias sobre bibliotecas (III)

os miúdos chegam-se ao sonho. tocam os livros com os olhos muito abertos. ouvem a escritora. naqueles miúdos ainda não existe um leitor. mas já existe tudo o que um leitor precisa para o ser. a curiosidade, a imaginação e o sonho.

três histórias sobre bibliotecas (II)

da janela da biblioteca vê-se um jardim que ainda não existe, pelas janelas grandes e abertas, um riacho que ainda está por nascer, as árvores que estão por plantar. da janela da biblioteca, vê-se tudo isto que ainda não existe, tal como lá dentro dos livros, onde tudo está apenas à espera do nosso olhar para crescer mundos inteiros.

três histórias sobre bibliotecas (I)

podemos viver num mundo antigo, um mundo que já não existe. talvez uma das coisas mais poderosas que nos podem dar é um livro sobre lugares que já não existem. é como ter à mão a ficção do real e sentir que a podemos construir nos nossos dias como nos apetecer. lembrei-me disso ao encontrar na biblioteca do cadaval o livro da colecção povos e lugares sobre a u.r.s.s. encontrei o livro e fiquei a imaginar que algures no cadaval, alguém vai pegar naquele livro e imaginar coisas incríveis no país do sovietes. como um novo tintin, mas agora fora dos livros.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

broa

a tradição de família leva todas as irmãs até ao forno da casa paterna, uma casa que agora é sobretudo isso, o velho forno familiar. fazem a massa, juntam-lhe os frutos secos, e agrupam centenas de bolinhos de massa sobre a mesa grande da cozinha. depois esperam que cada uma delas coza o suficiente, enquanto vão falando da vida, dos filhos e dos maridos, dos patrões e dos colegas de trabalho. ao fim da tarde, as pequenas broas são distribuídas em sacos, que cada uma leva para casa, onde as guardam e as distribuem, por sua vez, a familiares e amigos. a tradição de família é isto mesmo. fazer crescer sorrisos, a cada ano, com uma pequena broa de festa.


com um agradecimento à natália (e ao paulo, pelo transporte)

pequeno-almoço

demorou quase nada a preparar o pequeno-almoço, sempre de ouvido nos sons que eu fazia, do outro lado da parede, no quarto. veio até mim a sorrir, ainda com um pedaço de pão quente nos dedos. sorriu-me como quem faz nascer o sol. e eu acordei outra vez, retemperadas as forças que nos ligam aos lençóis cada manhã.

francesa

a poesia é para comer, dizia a natália. não sei se aquela francesa sabia disso. o que é certo é que cada página lida era suavemente arrancada do livro, guardada debaixo da toalha da praia, como um fruto que se colhe de uma árvore, se leva para casa, se guarda na fruteira. a poesia é para comer, dizia a natália. mas aquela francesa comia páginas de romances, todas as noites de verão, talvez com umas pequenas rodelas de pepino, uma pitada de coentros e sal.



para o zé abrantes

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

cor

dirias da tua aldeia deserta. mas a cabeça cria e multiplica, infinitamente, o espaço em branco, em branco, colorindo-o, colorindo-o.

mar

o barulho do mar é o barulho do mar. mas também: os teus olhos fechados, o teu corpo abraçado, a tua voz adormecida, o calor, o calor, o calor, em dias de tempestade.

voar

lá fora o vento. tu não descansas, corres. corres, quieto no teu lugar. parado. lá fora o vento. a voar. tudo.

domingo, 1 de novembro de 2009

pão-por-deus (III)

alguns quintais têm cães. algumas campaínhas não funcionam. algumas portas não se abrem. algumas pessoas não são simpáticas. mas às onze e meia começou a chover. haverá mais pão-por-deus no próximo ano.

pão-por-deus (II)

a senhora que me vende fruta todas as semanas, deu-me um saquinho de figos secos. pão-por-deus, disse ela. e sorrimos os dois.

pão-por-deus (I)

nunca tinha pensado nisso, mas hoje, os miúdos de santa cruz andavam pelo mercado ao pão-por-deus, pedindo em cada banca qualquer coisinha que coubesse no saco. e os sacos iam cheios.