sexta-feira, 9 de abril de 2010

discurso sobre a ética

li isto ontem à noite, no diário volúvel do enrique vila-matas, e percebi logo nesse instante que era este o meu presente para ti. a história é curta. num debate televisivo entre catherine ringer (vocalista da banda rita mitsuoko) e serge gainsbourg, ringer vai provocando gainsbourg com histórias do seu passado de actriz porno. gainsbourg diz-lhe que ela é uma puta, enquanto ringer lhe explica que ser actriz porno faz parte da "aventura moderna". aí, um gainsbourg tomado pelo álcool (e sabe deus por o quê mais), exclama:
- a aventura moderna não é repugnante. nós temos ética.
nós temos ética. li isto ontem à noite e ficou-me a ecoar no espírito, que raio de ética é esta que nos leva a sentir orgulho daquilo que fazemos. seguramente tem algo que ver com aquele texto que li, há umas semanas, em vila do conde. aquele que marca a diferença entre quem percebe de quantas coisas é feita um poema e quem pensa que tudo precisa de um documento regulamentar. mas sinto que é mais do que isso. talvez seja aquela ética que nos faz colocar a nossa cara, o nosso corpo, a nossa alma, em todas as coisas que fazemos. uma ética que torna inseparável a nossa arte de nós mesmos, fazendo tudo parte de um grande argumento que insistimos em que desbloquear de cada vez que enfrentamos uma folha ou uma tela. há, também, uma outra ética, uma ética que nos faz pensar no nosso trabalho de uma forma a que ele possa ser explicado a todas as pessoas que o tentarem perceber.
somos gente séria, é essa ética que eu sigo. somos gente séria e que acredita que aquilo que fazemos pode, de alguma forma, mudar o mundo das pessoas que tocamos. podemos mudar o mundo com uma palavra, com um gesto, com uma imagem. e também podemos mudar o mundo com um incentivo, com uma palavra carinhosa, com um olhar. isso, um olhar apenas e quantos mundos se alteraram devido a isso. a ética que sigo também tem um pouco desta inocência aparente de achar que todas as coisas são simples. mas volto atrás e sublinho, inocência aparente. como se fosse preciso um certo sossego para preparar o vulcão que nos sai dos dedos. como se fosse preciso um certo sossego para armadilhar os livros e as exposições em todos os lugares do mundo.
vou a meio do caminho e não me perdi (mesmo que seja isso o que pareça estar a acontecer). digo-te então, ficou-me a ética a ecoar na cabeça. a consciência de que tudo tem um preço e que, perante esse preço, cabe-nos a nós decidir se estamos, ou não, dispostos a pagá-lo. a consciência de que aquilo que fazemos tem, para nós, uma importância vital e que não podemos que isso choque com as nossas outras necessidades de comer, dormir ou respirar. a consciência de que só podemos ser vítimas do nosso cansaço e de que ficar cansado ou parar não será nunca uma solução. a consciência de que, já que somos assim, é assim que vamos ter que continuar a ser.
foi por isto que percebi, logo naquele instante em que li a história no livro do vila-matas, que este era o meu presente para ti. não sendo um presente que podemos usar ao peito, é seguramente um presente que poderás guardar no peito, na cabeça, onde quiseres, e exibi-lo feito teu em qualquer ocasião. é seguramente um presente para que fiquemos a pensar, eu e tu e todas as pessoas que o lerem, que até as coisas mais simples e pequenas precisam de ser repetidas de quando em vez. isto é utopia? isto é infantilidade? deixai os crescidos pensar o que quiserem. pensemos nós nas coisas como sentimos que elas devem ser pensadas. e talvez possamos repetir, como gainsbourg, "nós temos ética". nós temos ética.


para a isabel lhano