sábado, 15 de maio de 2010

da responsabilidade dos poetas

sou daqueles que consideram que um poeta é responsável pelos seus actos. daqueles que se entregam com seriadade aquilo que fazem, não deixando de ter um sentido crítico e uma saudável noção da precariedade do seu trabalho. no entanto, usar do humor sobre um poema ou acontecimento poético não significa desvalorizá-lo ou vendê-lo abaixo do preço de mercado. um poema é um poema. está constituído por palavras e pedaços de órgãos daquele que o escreve. devemos por isso respeitá-lo e olhá-lo como tal. uma flor que desabrocha no início da primavera, um cadáver que repousa sobre a mesa da autópsia.
sou daqueles que consideram que um poeta é responsável pelos seus actos. todos os seus poemas têm um significado e uma intenção. não acredito que um poema consiga dizer tudo aquilo que quer dizer. precisa de ser falado, lido, comentado. precisa de ser entendido, mastigado, digerido. o poeta que escreve e cala, afastando-se da luz da ribalta (mesmo que marque presença no limiar do palco), é um poeta que escusa a comprometer-se com aquilo que faz. aparece, distribui sorrisos, recebe medalhas por interpostas pessoas, fica calado. o não comprometimento com a sua arte pode ser uma ajuda no difícil caminho da procura de reconhecimento dos críticos, mas é uma falha no reconhecimento dos pares.
sou daqueles que consideram que um poeta é responsável pelos seus actos. o poeta não é um grupo. um poeta é um poeta, um ente individual que luta, no seu laboratório, contra a indefinição da palavra. a cada verso tenta encontrar um novo significado, uma nova utilização para aquele conjunto de letras. o poeta não é um grupo. um poeta dialoga, procura, nem sempre encontra. um poeta entrega-se de corpo e alma ao seu texto, sai arranhado, confuso, algumas vezes, mas sobrevive em si a vontade de se atirar ao lume da luta logo de seguida. o poeta não é um grupo. não é uma capa. não é uma crítica no jornal.
sou daqueles que consideram que um poeta é responsável pelos seus actos. não se é poeta às quinze e escriturário às dezasseis. qualquer proximidade de letra escrita, palavra falada, caneta, papel ou computador são um perigo para a sua concentração. um poeta não abdica nunca de olhar, poeticamente, a sua realidade. e quando pensa nas injustiças do mundo ou na roupa por lavar, pensa como poeta. quando prepara o almoço ou fala com o vizinho, fá-lo como poeta. quando publica um livro ou escreve uma requisição, escreve-a como poeta. não é uma benesse divina, é uma formatação do cérebro. pedir tempo para a poesia é como se pedisse tempo para respirar. o poeta respira poemas.
sou daqueles que consideram que um poeta é responsável pelos seus actos. a poesia não tem morada, não tem código postal. se formos sinceros com aquilo que fazemos, procuramos. se estivermos realmente entregues ao nosso trabalho, não desistimos. tentamos não entrar num livro com preconceitos. lemos o poeta laureado e lemos o poeta desconhecido com a mesma fidelidade ao fenómeno poético que ambos merecem. dizemos bem quando temos que dizer bem. dizemos mal quando temos que dizer mal. a nossa responsabilidade é a sinceridade. a sinceridade não preenche as salas do bom convívio. causa mossa. custa a engolir. mas é essa a responsabilidade do poeta, saber falar.
podemos não estar de acordo com as ideias dos outros, mas devemos saber entendê-las à luz daquilo que cada um faz na sua arte. devemos respeitar e compreender as ideias de cada um. devemos ser responsáveis e abertos ao que cada um oferece. devemos congratularmo-nos pela diversidade. devemos viver sem portas fechadas. devemos ter algum orgulho daquilo que fazemos. devemos ter a noção do seu lugar no mundo. devemos ter a noção da nossa função. devemos ser nós. devemos, acima de tudo, ser nós próprios. por muito que isso custe. por muito que isso fique mal. por muito que isso não nos garanta o olímpo. por muito que as coisas sejam aquilo que são.