quinta-feira, 3 de junho de 2010

deserto

tenho um barco à porta e em frente o deserto. estou sentado na soleira, em frente a um espelho grande que encontrei num velho sucateiro. olho-me, à espera que me cresçam asas das omoplatas. o meu corpo cada vez mais marcado pelo sol, mais magro, ansioso - tenho um barco à porta, o deserto avança. tenho um barco à porta, desenhei-o com lápis de cor e folhas roubadas aos papelões da cidade. olhos as letras desconhecidas e as impressões falhadas, contas que nunca ninguém vai pagar. olho-me no espelho, insistentemente, à espera que me cresçam asas das omoplatas. os meus braços que se esticam pelos lápis, os olhos que choram um pequeno mar - tenho um barco à porta, o deserto avança. tenho um barco à porta, danço pelas tardes em movimentos desconexos e invento uma lógica nova para o meu pensamento. do outro lado da casa, do outro lado da rua, pessoas passam a espreitar a minha sombra inquieta. olho-me no espelho e o meu brilho espalha-se pelo infinito, chegando até aos outros planetas, ao céu. espero que me cresçam asas das omoplatas - tenho um barco à porta e só o deserto avança.

texto originalmente publicado no blogue mil nove sete nove em 6 de junho de 2006